Pr�tica Transformante Integral

Neste Mundo ou Fora Dele?[1]

Ken Wilber

Andrew Cohen (fundador de What is Enlightenment?) pediu-me para dizer algumas palavras sobre o t�pico principal desta edi��o, nomeadamente, estar no mundo mas n�o pertencer ao mundo. E ainda, como � que a �nova� pr�tica espiritual Pr�tica Transformante Integral se relaciona com este assunto. O Andrew tem algumas preocupa��es no que toca a estes assuntos, preocupa��es que eu partilho, deste modo, fico agradecido por contribuir com o que me � poss�vel para esta discuss�o. Comecemos com a Pr�tica Transformante Integral (ITP) � o que �, e mais importante, o que n�o �.

Ilumina��o Sempre-Presente

As grandes tradi��es de sabedoria, de um modo geral, afirmam que a realidade � constitu�da por, pelo menos, tr�s grandes dom�nios ou campos: o f�sico, o subtil, e o causal (por exemplo, no Budismo, Nirmamakaya, o Sambhogakaya e o Dharmakaya). O dom�nio f�sico � o dom�nio do corpo material e do mundo sens�rio-motor, que podes apreender com os sentidos f�sicos quando est�s acordado. O dom�nio subtil � o dom�nio da mente e das suas manifesta��es, que podes observar nitidamente, enquanto dormes, no estado de sonho, quando te encontras em certos estados de medita��o e (dizem) nos dom�nios de bardo, de vida ap�s a morte. Todos estes, s�o estados de consci�ncia subtis. O dom�nio causal � o dom�nio da pura consci�ncia informe, um dom�nio ilimitado, radicalmente livre e de uma plenitude absoluta. O dom�nio causal � experimentado por qualquer pessoa durante o sono profundo sem sonhos (que � pura aus�ncia de forma, sem objecto), no entanto este apenas cede os seus segredos �ltimos quando nele se entra em plena consci�ncia, o que acontece em certos estados de medita��o profunda, v�rios tipos de satori ou despertar inicial e em estados extraordinariamente expandidos de consci�ncia sem limites.

No entanto, as tradi��es tamb�m afirmam que, al�m desses tr�s grandes dom�nios e estados, h� um quarto estado (turiya), o estado da Testemunha sempre-presente ou Identidade[2]

intr�nseca , a grande mente-espelho, que imparcialmente testemunha os estados acordado, de sonho, e sono profundo, mas que em si mesmo n�o � um estado � parte: � a Testemunha de todos esses estados, em si nem vem nem vai. (Tecnicamente, h� um quinto estado, turiyatita, que se verifica quando a pr�pria Testemunha se dissolve em tudo o que � testemunhado, e h� a pura realiza��o n�odual de Sabor �nico. Nesta simples introdu��o, referir-me-ei a estes dois, em conjunto, como a sempre-presente Identidade n�odual, ou pura Testemunha.)

O estado acordado vem e vai, mas a Testemunha � sempre-presente. O estado de sonho vem e vai, mas a Testemunha � sempre-presente. O estado de sono profundo vem e vai, mas a Testemunha � sempre-presente. Estados de consci�ncia extraordin�rios, not�veis, podem ser atingidos e praticados e alcan�ados nos dom�nios f�sico, subtil, e causal. Mas, a Testemunha n�o pode ser atingida, porque � sempre-presente. A Testemunha n�o pode ser praticada, porque � sempre-presente. A Testemunha n�o pode ser alcan�ada, porque � sempre-presente. Como Sri Ramana Maharshi frequentemente afirmou, �n�o h� nenhum alcan�ar da Identidade. Se a Identidade fosse alcan�ada, significaria que a Identidade n�o est� aqui e agora, mas que tem ainda de ser alcan�ada. O que se adquire como novo tamb�m ser� perdido. Logo ser� impermanente. O que n�o � permanente n�o merece o nosso esfor�o. Por isso eu digo que a Identidade n�o � alcan�ada. Tu �s a Identidade; tu j� �s Aquilo�. Ou como disse o grande Mestre Zen Huang Po �Que n�o se atinge a Ilumina��o, n�o � de modo nenhum conversa fiada, � a verdade. Dif�cil � compreend�-lo!� Podes atingir a Ilumina��o ou alcan�ar a Identidade tanto quanto podes conseguir os teus p�s ou obter os teus pulm�es.

Repara: as nuvens flutuam pela tua consci�ncia, pensamentos flutuam pela tua mente, sensa��es surgem no teu corpo, e tu �s a Testemunha de todos estes. A Testemunha j� est� funcionando plenamente, completamente presente, completamente desperta. A Identidade Iluminada j� est� presente a 100% na tua pr�pria percep��o deste texto. Esp�rito Iluminado � O que est� lendo estas palavras agora mesmo: qu�o mais perto podes possivelmente chegar? Porqu� sair e procurar Aquele que procura? A grande busca da Ilumina��o, n�o � apenas um desperd�cio de tempo; � uma impossibilidade colossal porque a Identidade Iluminada � sempre-presente, como a pr�pria Testemunha deste e qualquer momento.

� por isto que n�o h�, o mais honestamente falando, o �alcan�ar a Ilumina��o�, o �encontrar a Identidade�. Mas, tamb�m � �bvio, certamente acontece que alguns de n�s est�o mais conscientes deste facto do que outros � os quais apelidamos por despertos � o que, de certa forma, � verdade. No entanto o que realmente acontece nestes casos n�o � a descoberta ou conquista da Ilumina��o mas um profundo reconhecimento de algo que j� est� presente. � como olhares a montra de uma loja e veres uma figura indefinida olhando para ti. Moves a cabe�a em redor at� perceberes quem �, est�o com um choque s�bito, percebes que � o teu pr�prio reflexo na janela: tu est�s olhando para ti pr�prio.

Assim mesmo com a realiza��o ou o despertar. Aparentemente est�s olhando o mundo, �ali fora�, que parece muito real e muito � parte de ti, at� que, de repente, h� a percep��o � o simples reconhecimento � que est�s simplesmente a olhar a tua Identidade, e a tua Identidade � o Mundo inteiro, como est� surgindo momento a momento, agora mesmo, e agora mesmo, e agora mesmo. Quando imparcialmente o mundo, o mundo surge na Testemunha, e tu e mundo s�o um. Tu n�o v�s o c�u; tu �s o c�u. Tu n�o ouves os p�ssaros que cantam, que Testemunhas; tu �s os p�ssaros cantando. Tu n�o sentes a terra; tu �s a terra. Tudo isto vem num s�bito, espont�neo, n�o causado, reconhecimento silencioso, o reconhecimento do Sabor �nico n�odual, da tua pr�pria Identidade, do teu Rosto Original que tinhas antes dos pais terem nascido, da tua Identidade antes do nascimento do pr�prio universo; esta pura, sempre-presente, Identidade n�odual, sem extens�o no espa�o, por isso infinita, sem extens�o no tempo, por isso eterna � e contudo, � a �nica coisa que tu tens sempre verdadeiramente conhecido. Tu j� sabes que tu �s tu; e que tu, na mais profunda verdade, �s puro Esp�rito n�odual.

Essa percep��o ou reconhecimento � que parece ter um come�o no tempo � tr�s consigo, de facto, um outro reconhecimento: nunca houve um momento em que tu n�o conheceste a Identidade. Tu sempre soubeste, no mais �ntimo da tua consci�ncia � no que Ramana Maharshi chamou o EU-EU (porque � a Testemunha do pequeno eu ou ego) � no mais intoc�vel centro da tua perfeita consci�ncia, sempre soubeste que realmente n�o morrer�s nunca (porque a Identidade n�o tem extens�o no tempo), e tu j� sabes que estiveste sempre aqui, neste mundo, (porque a Identidade � sempre-presente). Tu j� sabes tudo isto, bem l� no fundo da tua mente. Tu est�s perfeitamente ciente de que �s a Testemunha deste momento. Sabes que �s o absoluto; sabes que �s Deus; sabes que �s Deusa; sabe que �s Esp�rito, e tu sabes que todo o ser sens�vel em qualquer parte do Kosmos pode fazer essa simples declara��o: quando eu permane�o como a verdadeira Identidade, EU-EU sou Deus. Eu sempre soube isto; tu sempre o soubeste isto. E tu sempre o soubeste porque a Identidade � sempre-presente.

Este reconhecimento silencioso parece ter um come�o no tempo, at� ao momento em que acontece, a� fica claro o que sempre foi totalmente �bvio. �Oh! Isso!� Esta profunda percep��o nunca come�ou porque nunca terminou. H� o reconhecimento de �eu sou Aquilo�, e, simultaneamente, o reconhecimento que eu sempre o soube. O Budismo Zen chama-lhe o portal sem portal. Deste lado do portal, que nos �separa� da Ilumina��o, o portal aparenta ser real � at� ao momento em que passamos por ele, olhamos para tr�s, e vemos que realmente n�o existia nenhum portal: portanto, sem portal na verdade. Mas, � muito mais simples do que isso. Tu �s � a Identidade, tu �s a Testemunha, tu tanto sabes isto agora, como sempre o soubeste.

Este reconhecimento sempre-presente � frequentemente designado por �ilumina��o�. � um reconhecimento simples, profundo, irrevers�vel, tal como olhares para a janela e reconheceres a tua pr�pria imagem, ap�s o que, reconheces tamb�m que sempre foi assim. Uma descri��o maravilhosa de tal despertar pode ser encontrada no livro Meu Mestre � Minha Identidade de Andrew. Tendo simplesmente visto o seu Mestre, Andrew reconheceu a sua pr�pria Identidade � assim mesmo � e existe apenas uma Identidade no Kosmos inteiro, da� o t�tulo.

Rigorosamente falando, esta percep��o ou despertar n�o foi causado por alguma coisa. N�o foi causada pelo seu professor H. W. L. Poonja, n�o foi causada pelo Andrew, n�o foi causada pela medita��o, n�o foi causada por o que quer que seja � pois, de facto, esta percep��o � sempre-presente. N�o te � poss�vel produzir algo que existe j� aqui. Ainda assim, deste lado do portal sem portal, h� certos factores que parecem facilitar este despertar. Destes, satsang � ou seja, simplesmente estar sentado na Presen�a desses cuja percep��o � brilhante, clara, e radiante � � provavelmente o mais intenso. Mas h� um incont�vel n�mero de outros factores que facilitam esta transforma��o, no qual se inclui a medita��o, as diferentes iogas (raja, jnana, bhakti, karma, kriya, laya) e � como iremos ver � a ITP. Mas, efectivamente, nenhum deles pode provocar em ti o despertar porque a Identidade desperta j� � sempre-presente, e tu j� sabes que assim �. Portanto, quando o despertar acontece ele quase mais se assemelha a um �acidente�. Como diz Baker Roshi: �A Ilumina��o � um acidente. A medita��o torna-o propenso ao acidente.�

Verdade seja dita, ningu�m realmente compreende todos os factores que podem ajudar a facilitar a ilumina��o perfeita. Se assim fosse, por esta altura, j� todos n�s estar�amos perfeitamente despertos. Al�m do mais, muitos dos estados tidos como �iluminados� s�o de facto estados do dom�nio subtil ou causal. Ou seja, s�o experi�ncias extraordin�rias � luminosidades, sons interiores, estados de aus�ncia de forma, beatitude, e �xtase � todos t�m um come�o no tempo. Mas a Testemunha n�o tem um come�o no tempo, porque � sempre-presente. O que tem um come�o no tempo �, simplesmente, finito e temporal; vem, fica um pouco, e parte. Mas a Testemunha iluminada n�o tem um come�o no tempo; � sempre-presente e tu sabes que � sempre-presente (agora mesmo, tu est�s ciente da Testemunha, como quem est� lendo este texto). A Ilumina��o �, de facto, a �nica coisa que nunca come�a (pois �, permanentemente, sempre-presente).

Abreviando, tu n�o te tornas iluminado; tu simplesmente acordas uma manh� e confessas que tu sempre j� �s, e que tens andado a jogar o grande jogo do esconde-esconde com a tua Identidade. E, se esse � o jogo que tu est�s jogando, ent�o certos elementos facilitadores � da medita��o � ITP � podem ser inclu�dos como parte do jogo, at� que te cansas da sua futilidade, te fartas da grande procura, admites a impossibilidade de alcan�ar a Ilumina��o, e tens a percep��o que tu j� o �s, repousando ent�o como a Identidade intemporal, que �s desde sempre, sorrindo com o choque s�bito de meu Mestre � minha Identidade, e eu tenho estado a olhar, na janela K�smica, o meu pr�prio reflexo.

Verdade Absoluta e Verdade Relativa

As grandes tradi��es, geralmente, fazem uma distin��o entre verdade absoluta e verdade relativa. Se por um lado a verdade relativa trata do manifesto, comum, mundo dual�stico � o mundo do �samsara� � a verdade absoluta dedica-se � infinita, ilimitada, inqualific�vel, verdade �ltima � a verdade do nirvana. Vejamos que, em �ltima an�lise estes dois mundos, samsara e nirvana, s�o n�odois, ou n�oduais, no entanto esta distin��o � �til.

O mundo relativo do samsara inclui os dom�nios f�sico, subtil e causal. Todos eles s�o dual�sticos, pois neles mesmos toma corpo alguma forma do dualismo sujeito-objecto. At� mesmo o dom�nio causal ou sem-forma � dual�stico, porque � considerado � parte do mundo da forma. Assim, todos os estados de consci�ncia extraordin�rios que podem ser alcan�ados ou atingidos ou praticados � todos eles, na verdade, envolvem apenas o relativo, mundo dual�stico, sejam eles os tanto mais maravilhosos que possam ser.

Mas a verdade absoluta � a verdade da Identidade sempre-presente, o n�odual, inqualific�vel, Esp�rito omnipresente, no qual o meu Mestre � a minha Identidade, e esta Identidade � intemporalmente e eternamente presente em tudo aquilo que surge neste e qualquer outro mundo. E enquanto, tu podes alcan�ar e atingir estados relativos, tu n�o podes alcan�ar o absoluto, pois � sempre-presente.

Aten��o, todas as formas de pr�tica espiritual � Pr�tica Transformante Integral inclusive � lidam apenas com a verdade relativa. Todas elas envolvem m�todos, vias, t�cnicas, e pr�ticas que muito eficazmente te podem ajudar a entrar em estados f�sicos, subtis, e causais, e esses estados podem, em si mesmos, ser verdadeiramente ben�ficos. Mas a Ilumina��o trata da verdade absoluta, e n�o h� nenhuma via, nenhuma pr�tica, e nenhuma maneira de conseguir atingir o que j� �. Pr�ticas relativas podem ser muito �teis � a medita��o torna-te propenso ao acidente � mas elas n�o podem, em si mesmas ou a partir de si mesmas, produzir ou causar a Ilumina��o (pois a Ilumina��o � j� sempre-presente).

Aqui est�, o que acredito ser, a principal preocupa��o que o Andrew me transmitiu sobre pr�ticas espirituais em geral e a ITP em particular, nomeadamente: estes caminhos frequentemente confundem pr�ticas relativas com a Ilumina��o Absoluta. Por outras palavras, elas oferecem v�rios tipos de consola��es e interpreta��es ego�stas subtis, em vez de transforma��o radical e puro reconhecimento da pr�pria Identidade. E, para al�m disto, todas estas pr�ticas relativas s�o t�o-somente modos subtis (ou n�o t�o subtis) para o ego continuar se divertindo com o seu jogo de alcan�ar o controlo do universo, pelo que estas pr�ticas podem por vezes, efectivamente, magoar mais que ajudar.

Julgo que o Andrew tem bastante raz�o neste ponto, e esta � uma inquieta��o que eu partilho. De facto, falei deste assunto num artigo anterior de What is Enlightenment?, em �Uma Espiritualidade Que Transforma�. Mas antes de entrarmos por a�, notemos que, por pr�ticas como ITP s� se ocuparem do dom�nio relativo isso n�o significa que elas n�o possam trazer qualquer benef�cio. Assim, olhemos um pouco mais de perto para o que pr�ticas relativas como ITP podem � e n�o podem � fazer.

Pr�tica Transformante Integral

A ideia subjacente � ITP � simples: numa tentativa de nos tornarmos mais �propensos ao acidente�, quantas mais dimens�es do corpo-mente Humano forem exercitadas, mais transparentes ao Divino se tornam, e assim, mais �propensos ao acidente� estamos individualmente. A ITP tenta por isso exercitar simultaneamente muitos dos aspectos principais das dimens�es f�sico, subtil, e causal. Ou seja, tenta exercitar as dimens�es f�sicas, emocionais, mentais, e espirituais da Identidade, e faz�-lo num contexto de rela��o com os outros e com o mundo (incluindo a comunidade e a natureza).

Podes imaginar isto como uma esp�cie de configura��o modular. Imagina, digamos, seis colunas. Estas colunas representam o f�sico, o emocional-sexual (prana ou chi), o mental ou psicol�gico, o contemplativo ou meditativo, a comunidade, e natureza. Cada coluna tem as diversas pr�ticas que t�m demonstrado ser ben�ficas para aquela dimens�o. Por exemplo, coluna um � o f�sico � poder� incluir, exerc�cio aer�bio, muscula��o, dieta saud�vel, nata��o, e por a� fora. Coluna dois � prana ou chi � poder� incluir hatha ioga, qi gong, tai chi chuan, etc. Coluna tr�s � psicol�gico � por exemplo, visualiza��o, afirma��es, e v�rios tipos de psicoterapia. Coluna quatro � contempla��o e medita��o � com zazen, vipassana, exame de consci�ncia, ora��o centrante, etc. Coluna cinco � comunidade � a incluir por exemplo, v�rios tipos de servi�o comunit�rio, hosp�cios, ajuda aos sem abrigo, ou qualquer tipo de aten��o relacional compassiva de compromisso social. E a coluna seis � natureza � poder� envolver a reciclagem de materiais, caminhadas pelo campo, eventos que celebrem a natureza, e por a� adiante. A ideia da ITP � simples: escolhe pelo menos uma pr�tica de cada coluna e pratica-as conjuntamente. Quanto mais dimens�es estiverem envolvidas, mais efectivas cada uma delas se torna, e tanto mais te tornas uma grande alma propensa ao acidente.

Mas lembra que, estas s�o ainda pr�ticas nos dom�nios relativos, e produzem apenas verdades relativas. A segunda maior preocupa��o de Andrew � precisamente que estas pr�ticas se tornem outra vez, simplesmente, num novo espa�o de recreio para o nosso ego. Sem d�vida nenhuma, tal pode realmente acontecer. Mas, e depois, qual � a novidade? O ego agarrar� qualquer coisa, satsang com um mestre perfeito inclusive, e corromper� tudo principescamente, s� para alargar o seu pr�prio poder e dom�nio. Bem-vindo ao samsara. O Andrew tem, no entanto, bastante raz�o para aqui fazer soar o alarme, e tem o meu total apoio. Ele tem sido, sempre, uma voz forte recordando-nos a absoluta Liberdade e Vacuidade, n�o apenas a seguran�a e o desprendimento condicionados, e estou firmemente ao seu lado neste ponto crucial.

O Andrew terminou h� pouco a leitura do manuscrito de um livro meu chamado Boomeritis. � uma cr�nica dos modos que o ego adoptar�, eventualmente qualquer coisa � da f�sica � teoria dos sistemas, passando pelas grandes tradi��es de sabedoria, at� � medita��o � e far� deles um jogo de promo��o pessoal: �Eu tenho o novo paradigma que ser� a maior transforma��o da hist�ria universal; eu tenho o melhor caminho espiritual que alguma vez foi inventado; eu fa�o parte de uma nova cultura integral, acima de tudo aquilo que surgiu at� hoje; eu tenho...� Bem, tu sabes como �. O Andrew diz-nos que as �novas� abordagens � espiritualidade � psicologia transpessoal e ITP inclu�das � s�o frequentemente, nada mais do que, novas formas de boomeritis. Mais uma vez, concordo totalmente. (Podes ver uma descri��o breve de �boomeritis� no Cap�tulo 2 do modestamente intitulado �Uma Teoria de Tudo�, acabado de sair pela editora Shambhala.)

A atitude emocional boomeritis tende a ser, �Ningu�m manda em mim!� E n�o h� d�vida que a natureza �escolhe e leva� da ITP pode jogar directamente para o lado da postura boomeritis. A Espiritualidade degenera, ent�o, no formato de cafetaria t�o predominante na nossa cultura: �Vejamos, eu levarei um pouco disto, um pouco daquilo, um pouco da nova f�sica, um pouco de trabalho respirat�rio, algumas guloseimas tribais ind�genas, uma pequena pitada de teoria de sistemas, alguns rituais da Deusa, e, ooooh, vejamos, d�-me um pouco de xamanismo e duas x�caras de ayahuasca. Fant�stico! Estou t�aaaao iluminado que nem aguento.�

In�til dizer que, o Andrew n�o est� surpreendido. Nem eu, e adivinho, nem tu.

Mas lembra que todos esses jogos ego�stas s�o simplesmente um abuso dos caminhos relativos em geral e da ITP em particular. Uma das coisas em que a ITP � verdadeiramente boa � em, com simplicidade, tornar o corpomente condicion�veis mais saud�vel dentro dos seus pr�prios limites. Temos j�, consider�veis provas cient�ficas que demonstram que pr�ticas como a ITP podem retroceder o processo de envelhecimento fisiol�gico em cerca de uma d�cada e reduzir significativamente a incid�ncia de doen�as coron�rias, ataque card�aco, da diabetes, e a maioria das doen�as degenerativas. Repito, isto n�o causar� a Ilumina��o! Mas far� duas coisas: ajudar� o teu corpomente condicion�veis a tornar-se muito mais saud�vel tanto quanto lhe � pr�prio e poss�vel, e torna-te mais propenso ao acidente. E, ent�o a�, na presen�a de um verdadeiro Mestre, ser� mais prov�vel confessares e admitires a Ilumina��o, de forma simples, mas directa, reconheceres que meu Mestre � minha Identidade.

Se quiseres saber mais sobre algumas formas de ITP, poder�s come�ar com a Pr�tica Transformante Integral de Michael Murphy e George Leonard ou com o meu pr�prio trabalho �Sabor �nico�. A presente express�o �pr�tica transformante integral� pode ser usada estritamente para designar a abordagem de Murphy e Leonard, ou para significar qualquer pr�tica equilibrada, que inclua os v�rios n�veis e dimens�es do potencial humano. De um modo geral, neste ensaio, uso a �ltima defini��o, excepto onde o contr�rio � indicado. No entanto, tenho uma enorme considera��o pelo trabalho que o Murphy e o Leonard t�m feito, e eles pr�prios s�o os primeiros a indicar que a sua ITP pode tamb�m envolver uma rela��o com um reconhecido director espiritual. N�o esquecer, tamb�m, que h� muitas formas diferentes de ITP, e novas formas continuar�o a ser desenvolvidas � medida que esta experi�ncia se desenrola.)

Como j� referi, um das raz�es pela qual recomendo ITP �, simplesmente, pelo que esta permite ao nosso ve�culo condicion�vel � torna o corpomente mais saud�vel. � muito complicado fazer satsang numa cadeira de rodas, depois de ter um s�bito ataque de alguma doen�a, ou quando se est� numa cama de hospital. A ITP abrange apenas o dom�nio do relativo, mas torna-o mais saud�vel, portanto mais f�cil de soltar � mais f�cil para ti dares conta que a tua verdadeiro Identidade � corpomente abandonado [3]. Quando o ve�culo condicionado n�o � saud�vel, ou est� a sofrer, ou inquieto, ele � a porta que range pedindo o �leo da nossa aten��o; mas quando est� a funcionar harmoniosamente, � um tanto mais f�cil para a Identidade libertar-se da tua identifica��o com teu corpomente individual e desenrolar-se na vastid�o do Espa�o Infinito, no qual achar�s o teu lar sempre-presente.

Simultaneamente, quando despertas para a verdade absoluta, isso, praticamente, em nada beneficia o ve�culo relativo. Podes perfeitamente despertar para o Esp�rito radical e Identidade pura, mas isso n�o te permitir�, com o teu corpo, executar proezas atl�ticas espantosas; n�o te levar� a, mentalmente, seres capaz de entender a mec�nica qu�ntica; de idiota n�o te converter� em erudito; n�o te trar� um novo emprego. O Sabor �nico atravessa simplesmente todas essas formas relativas e deixa-as tanto quanto as encontrou. Essas capacidades condicion�veis para serem melhoradas, t�m de ser envolvidas tendo em conta o que lhes � pr�prio. E, se n�s queremos que os nossos meios condicionados sejam uma janela luminosa e transparente � Identidade iluminada, precisamos de cultivar e envolver esses meios em pr�ticas do dom�nio relativo. Preferes estar perfeitamente Iluminado e ter um ataque card�aco, ou estar Iluminado e n�o ter um ataque card�aco? Para a tua Identidade iluminada tanto faz (pois abra�a tudo quanto surge com equidade, imparcialmente), mas para a tua Identidade condicionada n�o � bem assim! E � a� que a ITP pode ajudar consideravelmente: ela vai aperfei�oar a forma limitada, aliviar a sua densidade, torn�-la mais transparente ao Divino.

Repito, a preocupa��o de Andrew vai para o facto de todo este frenesim em torno das formas condicionadas remeter para segundo plano a radical, absoluta, Verdade n�odual � e, mais uma vez, estou de acordo. Mas se o professor est� atento a este perigo, e confessou o seu pr�prio sempre-presente Reconhecimento e Realiza��o, ent�o n�o h� nenhuma raz�o para que ele n�o possa recomendar tanto o relativo como o absoluto, pois ambos podem ser �teis, ainda que apenas um seja definitivo. O problema, o Andrew dir�, � muitas destas propostas oferecerem somente pr�ticas no dom�nio relativo, esquecendo o fundamental, isto de facto � verdade, e � de lamentar.

Esta precau��o aplica-se do mesmo modo dentro dos est�dios do dom�nio relativo. Extensa pesquisa inter cultural tem demonstrado que nos dom�nios relativos (f�sico, subtil, e causal), os indiv�duos tendem a progredir ao longo de v�rios tipos de est�dios (incluindo est�dios cognitivos, afectivos, e morais). Estes est�dios n�o se aplicam � verdade absoluta, apenas ao dom�nio relativo, mas neste dom�nio, constata-o uma quantia enorme quantidade de factos. No entanto, ningu�m, eu n�o de certeza, quer confundir estes est�dios do dom�nio relativo com a verdade absoluta � e portanto confundir fases finitas com liberta��o infinita.

Portanto, o que � de notar acerca da ITP e sobre pr�ticas espirituais no geral � as quais, todas, tentam atingir certos estados ou alcan�ar certos objectivos � � que todas elas pertencem ao dom�nio relativo. Tu podes, de facto, atingir diferentes estados f�sicos, subtis, e causais, e a ITP � claramente um dos meios mais efectivos para o conseguir. Mas, enquanto, essas pr�ticas te tornam mais propenso ao acidente, elas n�o t�m, no entanto, nada a ver com a verdade absoluta e o despertar final, pois o despertar n�o pode ser conseguido ou alcan�ado, mas somente confessado aqui e agora, normalmente na boa companhia ou satsang dos que j� aceitaram a Verdade sempre-presente.

De Andrew-I para Andrew-II

Em �Uma Espiritualidade Que Transforma�, sugeri que muitos mestres esclarecidos � mestres verdadeiramente cientes do sempre-presente Sabor �nico em todos os est�dios, superiores e inferiores � tendem a atravessar duas fases, por assim dizer, no seu trabalho pedag�gico. A primeira fase � uma oferta simples de, nada mais que, Sabor �nico � uma manifesta��o s�bita de consci�ncia simples e verdade absoluta � e um negligenciar de quaisquer meios imperfeitos e pr�ticas condicionantes. Por�m, porque (1) isto � frequentemente ineficaz (� de facto demasiado, para muitos praticantes, confessarem logo � partida), e (2) mesmo que funcione, produz frequentemente um efeito secund�rio paralelo (pessoas, de tal forma sens�veis para a consci�ncia simples, que n�o conseguem sequer exercer uma profiss�o), estes professores passam ent�o para uma segunda fase na qual eles realmente se servem de algum tipo de ITP, ou algum tipo de pr�tica que inclui, conjuntamente, tanto os meios definitivos como os relativos. Em �Uma Espiritualidade Que Transforma�, dei como exemplos Adi Da e Chogyam Trungpa, os quais, tanto um como o outro, come�aram ensinando �s� existe Deus� (ou �only Ati�) e depois acabaram por ensinar os Sete Est�dios e os Nove Ve�culos, respectivamente � ou seja, uma pr�tica mais integrante envolvendo o definitivo e o relativo.

O Andrew diz o mesmo ter acontecido com ele, e o modo como ele aponta para esta abordagem mais equilibrada �, a meu ver, espantoso. �A minha posi��o em rela��o a todas as aproxima��es relativas ao inquestion�vel evoluiu significativamente, diria mesmo, dramaticamente, desde os primeiros dias da minha carreira de professor�. (Dividi o meu trabalho liter�rio em v�rias fases, pomposamente designadas por �Wilber-I�, �Wilber-II�, etc., e o Andrew usa ent�o essa mesma disposi��o para, gracejando, referir a sua pr�pria evolu��o � meio a brincar, mas tamb�m bastante a s�rio.) �A abordagem �s�-o-absoluto' que descreves pode ser chamada �Andrew-I', e agora, quase quinze anos depois, diria que o meu ensino evoluiu para �Andrew-II' ou, at� mesmo, �Andrew-III' � um equil�brio entre o absoluto e o relativo.� �Comecei a notar que explos�es n�oduais raramente transformavam a pessoas por inteiro. Tornou-se deveras �bvio que as pr�ticas, i.e., medita��o, contempla��o, confronto, auto-interpela��o, e um compromisso envolvendo todos os n�veis do nosso potencial humano precisavam de ser energicamente empreendidas, caso o resultado desejado fosse uma verdadeira transforma��o.�

Tendo em conta esta abordagem mais equilibrada e inclusiva, a cr�tica de Andrew aplica-se, ent�o, a esses m�todos que oscilam quer para um lado, quer para o outro. Aos caminhos que, de tal modo envolvidos em pr�ticas no dom�nio relativo, esquecem a definitiva Meta e Fundamento (formas que podem incluir pr�ticas desde a ITP at� � pr�tica vipassana), o Andrew dirigiu-se do seguinte modo, �A Liberta��o Radical n�o consta de modo nenhum deste filme, e sem isto, � �bvio que a t�o-essencial tens�o evolutiva, que torna todas as coisas poss�veis, tamb�m n�o passa por aqui�. Por outro lado, h� abordagens que se centram apenas no absoluto, tal como o movimento �neo-Advaita�. �Com a explos�o do neo-Advaita, no meio da qual parece que nos encontramos, eu quase sempre adopto a posi��o oposta. A insist�ncia do �neo-Advaita� em afirmar que s� a consci�ncia � real, geralmente, n�o resulta em liberdade aut�ntica, bem pelo contr�rio, tende a proporcionar a mais f�cil (e mais assustadora) fuga da vida real e das suas sempre estimulantes inerentes implica��es de ser verdadeiramente um ser humano aut�ntico.

�De facto�, continua Andrew, �isto foi o que conduziu � dissolu��o da minha rela��o com Poonja. Seja como for, torna-se um assunto de tal forma subtil � a rela��o entre a Ilumina��o, o desenvolvimento humano e a evolu��o. Por um lado, t�o simples, por outro, t�o complexo e delicado.�

De facto, t�o simples contudo t�o complexo. O que encontro de t�o encorajador em tudo isto � todos n�s � os professores e estudantes da Ilumina��o � estarmos, neste momento da hist�ria, vivendo uma experi�ncia verdadeiramente not�vel. Nunca antes, no planeta, todas estas tecnologias do desenvolvimento[4] estiveram totalmente dispon�veis numa �nica cultura: temos acesso, n�o s�, a todas as formas de psicoterapia Ocidentais e �s t�cnicas do potencial humano, como temos tamb�m acesso a praticamente todas as maiores tradi��es de sabedoria do mundo. E agora, todos n�s, estamos envolvidos neste �simples contudo complexo� experimento de como melhor equilibrar todas estas pr�ticas, abra�ar o relativo e o absoluto, e assim encontrar os melhores caminhos de, n�o s�, despertar para a nossa pr�pria Identidade sempre-presente � despertar para o absoluto � como depois, habilmente e compassivamente, expressar essa Realidade �ltima no mundo, harmonizando nirvana e samsara em cada e qualquer gesto. Estamos todos envolvidos nesta magn�fica experi�ncia, neste gesto de harmonia, neste reconhecimento gracioso de sermos, simultaneamente, o Singular e o Plural em todas as nossas ac��es.

E quando tu reconheceres essa simples identifica��o, ent�o, estar�s realmente no mundo sem lhe pertencer, porque o mundo estar� em ti. Teu ego est� no mundo, mas o mundo existe na tua Identidade. Vive a Identidade aqui, agora mesmo, e repara: As nuvens flutuam pela tua consci�ncia, e tu �s tudo isso. O sol est� brilhando na tua consci�ncia, e tu �s tudo isso. Os p�ssaros est�o voando pelo teu Grande Pensamento, e tu �s tudo isso. A terra surge na tua consci�ncia, e tu �s tudo isso. Tu � tu verdadeiramente � n�o est�s no mundo de modo nenhum, � o mundo que fl�i atrav�s de ti, em ti, e tu abra�a-lo por inteiro. Em ti desponta o mundo, e tu �s plenitude com todos os seus habitantes, ferozmente compassivo e suavemente com um gesto, esta Identidade apenas, que �s s� tu, ausente do tempo e por todo o sempre. Tu �s esta Identidade aqui e agora, olhando o mundo qual infinito resplandecente a surgir dentro de ti. Sempre foi assim, e tu sempre o soubeste. Assim � agora mesmo e, precisamente agora, tu j� o sabes.

[1] Em ingl�s: Integral Transformative Practice � In this world or out of it?

[2] Em ingl�s: Self

[3] Em ingl�s: bodymind dropped

[4] Em ingl�s: growth techcnologies

Vers�o portuguesa de Manuela Pessoa

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O texto original pode ser acedido em http://www.wie.org/j18/wilber.asp?page=1